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meu plano de voar em uma lata de biscoitos com balões de gás hélio

Quando eu era pequena, eu queria voar na lata de biscoitos do meu avô com alguns balões feitos de hélio. Não era brincadeira, não, nem imaginação. Era um plano muito sério. Eu tinha na minha cabecinha, inclusive, os passos estrategicamente planejados para colocar a seríssima ideia em ação:



1) pedir vô a lata emprestada (a qual era muito estratégica, pois já vinha com os biscoitos para eu não passar fomes nas viagens, além do quê, eu já a considerara por saber que ela seria suficientemente leve para flutuar);

2) comprar balões de hélio (meio difícil, pois eles eram extremamente caros na época e precisavam contar com a ajuda da carteira benevolente de mãe, a qual não era benevolente para balões de hélio. Porém eu acreditava no meu plano e acreditava que, quando ela o soubesse, veria a sensatez de apoiar uma ideia tão genial e cederia a benevolência para balões de hélio dessa vez);

3) furar a lata para amarrar os balões de hélio com martelo e prego. Essa parte era infalível e simples (eu tinha muita experiência martelando pregos - embora não martelando latas, evidentemente - e confiava que meu potencial de martelar tábuas aleatórias com o único propósito de martelar tábuas aleatórias, deveria, para mim, bastar com suficiência para martelar latas);

4) entrar na lata e ir aonde eu quisesse.

Nada me tirava de cabeça o quão perfeito meu plano era, tão meticulosamente pensado, tão detalhadamente calculado. Eu pensava que pensara em tudo e, para o que precisava, eu me considerava capaz de realizar, de persuadir, de convencer, de buscar e encontrar e colocar em ação. Claro que tudo isso soa, para um adulto, um conjunto de absurdos pensados pela ingenuidade de uma criança. Mas era sério para mim, tão sério!

Tão sério que fui à casa de vô certo dia, sempre tentando conseguir, entrementes, a benevolência da carteira de mãe para meus balões de hélio (uns três eu calculava bastarem para o projeto), e me encaminhei direto à cozinha em busca da lata para solicitar, em caridade, à causa de um grande plano infalível. Pequena, olhei para o alto do armário onde se guardava a imprenscindível lata, a qual eu nem alcançava, claro.

A decepção veio junto da confusão de descobrir a lata pequena demais para que me coubesse. Também a raiva pela condescendência de mãe com relação a mim ao rir da minha ingenuidade quando eu disse, por mim mesma, que a lata não me cabia, cheia de raiva dessa mesma ingenuidade combustível de expectativas ardilosas.

Era o fim do plano infalível tão meticulosamente planejado. Fim do plano e de tudo que eu projetava de bom para mim com seu alcance.

Vira e mexe, na minha vida de adulta, eu me acho criança de novo fantasiando voar em latas de biscoito com balões de hélio sem saber que, quando eu for pegar a lata, vou descobrir que ela é um sonho em que não me cabe e um que não cabe a mim. Aí eu lembro como era bom pular da altura do sofá com um guarda-chuva acreditando que eu ia flutuar - ideia, essa, parente da lata com balões -, sempre nesse sonho idílico de, alguma forma, voar, pairar, magicar.

E a raiva por ser ingênua. E a tristeza por perder sonhos. E crescer um pouco mais a cada um que eu descubro impossível de realizar. Como casar com o príncipe encantado. Ser feliz com meu emprego. Ter um mesmo melhor amigo junto de mim pra sempre. Ser apoiada pela minha família nas minhas próprias decisões. Vou diminuindo o destino da lata, diminuindo, diminuindo... De voar para longe, para voar para perto. De sair do chão e flutuar, para me caber simplesmente. De me caber, para tão somente sequer existir. De sonhar e realizar e ser feliz, para sobreviver aos dias ruins que parecem não acabar.

Eles chamam isso de crescer. E eu acredito. Mas às vezes... às vezes me lembro da emoção de ter fé de criança e saltar do "alto" do sofá com os olhinhos fechados esperando a sensação de flutuar...! mas recebendo, em troca, a pancada do chão contra as pernas e o corpo todo. Lembro-me da fé de tentar mais de uma vez de jeitos diferentes: com guarda-chuva, com toalha de banho amarrada no pescoço feito capa,  com um lençol-para-quedas. Lembro-me disso e penso que eu acreditava tanto em mim quando criança! E hoje não tenho certeza se consigo continuar acordando mais um dia que seja para viver o mesmo dia de novo.

Diante disso, penso sobre crescer e ficar grande, como as pessoas dizem, e penso em como isso me parece muito mais diminuir e ficar pequeno. Não sei se é muito consolador ter a sensatez de nem mesmo cogitar voar em uma lata de biscoitos com balões de gás hélio. Só sei que eu fui muito feliz até o dia em que descobri não caber na lata, aquela lata que me fez planejar e ter vontade de seguir em frente.

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